Sem Gestão de Informação Não Há Memória Que Perdure...
Por FERNANDA RIBEIRO PROFESSORA DA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO
Quarta-feira, 14 de Janeiro de 2004
No passado dia 8 de Janeiro teve lugar o lançamento do livro "Diagnóstico aos Arquivos Intermédios da Administração Central", resultado de um estudo encomendado pelo Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo (IAN/TT) ao Observatório das Actividades Culturais (OAC), o qual vem revelar o estado catastrófico e de abandono dos arquivos da administração central, que atingem a alarmante extensão de 700 Km. Pelas notícias e artigos de opinião divulgados na imprensa (Expresso de 3/1/04, Público de 9/1/04 e 12/1/04) não só ficamos informados de que o estudo em causa não veio descobrir nada de novo, pois já em 1992 havia sido feito um levantamento idêntico que revelara cerca de 800 km de documentação do Estado em condições precárias, como percebemos que na última década não foi tomada qualquer medida para obviar à situação diagnosticada.
Clama agora o IAN/TT por uma lei que obrigue a incorporações da documentação da administração central na Torre do Tombo para ser possível salvar a memória da Nação que está em risco de perder-se. E o Ministério da Cultura alinha nesta política de transferência da documentação, que, bem vistas as coisas, mais não é do que uma política de alijar os problemas e aliviar a consciência. Esta foi também a política de Alexandre Herculano quando em 1857 e 1862 conseguiu fazer promulgar dois diplomas que obrigavam à transferência dos documentos "históricos" (primeiramente os anteriores a 1280 e depois os de antes de 1600) para o Arquivo Nacional. Graças a essa política arquivística incorporacionista, que servia os interesses dos historiadores, o Arquivo Nacional ficou a abarrotar, no início do século XX foi acrescido de três anexos e, a partir de 1916, houve necessidade de criar os Arquivos Distritais para ser possível tutelar nos arquivos do Estado toda a documentação que se pretendia incorporar. Mas já não vivemos no Portugal oitocentista e a Arquivística deixou de ser uma ciência auxiliar da História!
Hoje, em plena Sociedade da Informação, com meios tecnológicos poderosos, de produção e reprodução acelerada de Informação, o paradigma historicista e concentracionista está em crise profunda e as políticas arquivísticas do Estado, que têm de ser políticas de informação, não podem continuar a assentar numa desresponsabilização e abandono, nem numa transferência do problema para o Arquivo Nacional. Mesmo que, numa hipótese absurda, o IAN/TT tivesse umas centenas de arquivistas capazes de avaliar, seleccionar, descrever, indexar e disponibilizar os 700 km de documentos, quando, ao fim de alguns anos (muitos, por certo), esses procedimentos estivessem concluídos já haveria certamente outras centenas de quilómetros à espera em situação catastrófica (o estudo só teve em conta os chamados "arquivos intermédios", mas em arquivo corrente há, com certeza, idêntica quantidade de documentação). Mas, esta hipótese é uma mera figura de retórica, pois sabemos que o IAN/TT ainda tem por inventariar e divulgar convenientemente incorporações do século XIX, como por exemplo os arquivos das ordens religiosas extintas em 1834, cujo guia só muito recentemente foi elaborado.
Nos dias de hoje a salvaguarda da memória passa por uma eficaz política de gestão de informação a montante das instituições de custódia. É junto das administrações, na fase de produção da informação, que é preciso intervir. Nos ministérios, nas secretarias de Estado, nas direcções-gerais, nos diversos organismos estatais tem de haver gestores de informação/arquivistas qualificados, capazes de desenvolver estratégias de informação, de introduzir critérios de economia, de eficácia e de qualidade na informação produzida, de lidar com os novos suportes digitais, de criar condições para que a informação electrónica possa perdurar face à obsolescência do software e do hardware, o que hoje significa associar meta-informação aos conteúdos logo no momento da sua produção. Só uma intervenção nesta fase poderá estancar o crescimento desmesurado e descontrolado dos suportes de informação e evitará os "arquivos intermédios" em situações como a nossa. Mais do que isso, tratando-se de informação digital, só este tipo de intervenção permitirá conservar a memória dos tempos actuais.
Como muito bem sublinha o Prof. Doutor José Subtil, no artigo de opinião publicado no "Público" do passado dia 12, a questão dos arquivos da administração central não é um problema do Ministério da Cultura, mas sim um problema político do Estado. Antes de serem um problema cultural e patrimonial, os arquivos são uma questão de informação e, como tal, um recurso estratégico fundamental para a tomada de decisões e a administração em geral.
Actualmente, com uma percentagem cada vez maior de informação digital, ou se definem políticas de informação e se intervém desde a fase administrativa para criar condições de preservação da memória ou daqui a alguns anos o IAN/TT terá o problema resolvido de per se, pois provavelmente o pouco que restar para ser incorporado estará inacessível por obsolescência da tecnologia.
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